Artigo

Milimetricamente Drummond

Digo no sentido de sorver Drummond letra a letra, palavra a palavra, verso a verso

Digo no sentido de sorver Drummond letra a letra, palavra a palavra, verso a verso. Virando e revirando cada sentido inventado pelo itabirano, até fazer sentido para teu próprio assunto. Exerças a função que for, em espectro maior, indo do peão campeiro ao programador de inteligência artificial, passando pelas "profissões impossíveis" _ educar, governar, psicanalisar _, no inesgotável Drummond encontrarás rumos alentadores. Não acreditas? Olha o poema O seu santo nome, no livro Corpo, de 1984: "Não facilite com a palavra amor. / Não a jogue no espaço, bolha de sabão. / Não se inebrie com seu engalanado som. / Não a empregue sem razão acima de toda razão (e é raro). / Não brinque, não experimente, não cometa a loucura sem remissão / de espalhar aos quatro ventos do mundo essa palavra / que é toda sigilo e nudez, perfeição e exílio na terra. / Não a pronuncie." Reconheço covardia em iniciar a questão logo pelo amor, onde poetas são imbatíveis, e Drummond ainda pior. Mas, não nos deixa de fazer bem desfrutar de cara a cortante leveza irônica do mineiro.

No mesmo Corpo, mais adiante, ele detalha certa infelicidade no viver _ percepção levantada bem antes, pelo ceticismo freudiano _, quando nos brinda Mortos que andam: "Meu Deus, os mortos que andam! / Que nos seguem os passos / e não falam. / Aparecem no bar, no teatro, na biblioteca. / Não nos fitam, / não nos interrogam, / não nos cobram nada. / Acompanham, fiscalizam / nosso caminho e jeito de caminhar, / nossa incômoda sensação de estar vivos / e sentir que nos seguem, nos cercam / imprescritíveis. E não falam". Essa 'incômoda sensação de estar vivos' é um alerta emancipador para hedonistas compulsivos, e ilusórios, perseguidores do inumano estar-feliz-a-qualquer-preço. Com Drummond a bordo essa turma pode escapar-se de dar, inexoravelmente, com os burros n'água.

Ou, quem sabe, no monumental A Chave possas encontrar fôlego para seguir, vida a fora, o que te cabe apenas: abrir portas incessantemente, do primeiro ao último dia. [...] "A porta principal, esta é que abre / sem fechadura e gesto. / Abre para o imenso. / Vai-me empurrando e revelando / o que não sei de mim e está nos Outros. / [...] / É dentro em nós que as coisas são, / ferro em brasa _ o ferro de uma chave".

Esse 'o que não sei de mim e está nos Outros' é essência drummondiana, que funciona como chave para relacionamentos que se queiram significativos, apontando que acaso venha a me desconhecer, busque eu a mim nos Outros, com O maiúsculo, o Outro de grande peso, forma de espelho de mim. E, ainda mais notável, as coisas só são, só passam a existir na realidade, quando as construirmos dentro de nós. Na construção a presença do Outro é imprescindível. O Outro, como meu céu e meu inferno, segundo a forma em que eu o percebo e ele me percebe.

Vai para Renata Gastal, cara amiga, quando sua 'Anteparo' completa maioridade empresarial.


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